domingo, 3 de maio de 2020

“A moda lolita tem alguma relação com fetichização da pedofilia?” E porque temos todo o direito de ficarmos irritadas com essa indagação.


Nos últimos dias vimos uma matéria falando sobre a fetichização da infância onde a foto de chamada era uma lolita. Isso trouxe à tona novamente uma discussão antiga sobre a não relação da moda com o tópico e a indignação da comunidade com ainda sermos relacionadas a isso mesmo que em momento algum o estilo tenha tido qualquer intenção de se assemelhar à uma criança ou de ter algum apelo sexual. Eu não acredito que a pessoa que escreveu a matéria tinha a intenção de associar nossa forma de se vestir ao conteúdo de seu texto, afinal ele não citava a moda em momento algum e, as vezes, quem faz a chamada nem é a mesma pessoa que escreve a matéria. Acredito que a mulher nem mesmo soubesse o que é o estilo.
A escolha da imagem provavelmente se deve a um documentário antigo que falava sobre o mesmo assunto e usava a mesma foto como imagem de divulgação. Nesse caso, eu duvido que não soubessem nada sobre o estilo ou a comunidade lolita, afinal nossas roupas não são tão fáceis assim de se conseguir. Se pesquisaram o suficiente para achar uma moda de rua com origem no outro lado do mundo, poderiam ter pesquisado o suficiente para saber que não estamos ligadas ao tema do documentário e tentamos a anos lutar contra essa ideia. Independente disso, mesmo não sabendo o que é moda lolita, é questionável e contra produtivo que, ao falar sobre ofensas sexuais, escolha-se para ilustrar o assunto uma imagem onde não há nada inerentemente sexual, mas que, dado contexto, cria um aspecto sexualizado e infantilizado sobre a modelo, uma mulher adulta, além de reforçar esse estigma sobre toda uma moda e seus membros.
Não é de hoje que a comunidade lolita passa por dificuldades na hora de fazer com que o mundo entenda que não há nada de errado em se vestir como nos vestimos. Mais do que isso, não é incomum que participantes de outras modas alternativas passem pelas mesmas dificuldades e, principalmente, que as mulheres dentro desse contexto tenham sua forma de se vestir relacionada ao sexo ou a uma atividade infantil. Isso mostra muito sobre como são vistas na nossa sociedade mulheres que não se conformam a um padrão específico voltado ao mundo privado do lar e da modéstia e invisibilidade ligados a esses espaços.
Quando nós, mulheres, ousamos colocar sob nossos corpos roupas que chamem atenção, seja essa atenção de qualquer natureza, somos tratadas como aberrações de circo e nossa aparência é vista como um convite.  Isso chega a níveis alarmantes quando várias lolitas já tiveram que passar pela situação humilhante e desrespeitosa de terem suas saias levantadas no meio da rua por curiosos sem noção que “queriam ver o que deixavam elas armadas”.
Não deveria ser comum ou socialmente aceitável tocar em pessoas desconhecidas ou levantar suas saias sem o seu consentimento, mas felizmente isso parece óbvio para a maior parte da população. O que não parece ser tão óbvio assim é que também é nocivo relacionar a forma de se vestir de alguém com algo tão pesado quanto pedofilia quando em momento algum houveram motivos para se fazer essa associação ou se sentir no direito de  indagar uma pessoa sobre sua vida sexual sem ter intimidade para tal, como se sua roupa fosse algum tipo de permissão, e isso vale para muito mais do que apenas moda lolita. Mesmo assim, somos constantemente confrontadas com a “problemática” dos panos que usamos sobre nossos corpos e nos encontramos em uma situação em que temos que nos justificar interminavelmente, nos defendendo de um crime não cometido, assim como outras mulheres tem que se justificar por roupas consideras curtas ou reveladoras demais pela régua social.
Eu sei que o nome da moda é infeliz. A comunidade já tentou mudá-lo várias vezes sem sucesso e o principal motivo disso a origem japonesa do estilo. Já que a maioria das marcas e dos rostos que representam a moda vem de lá, são eles que acabam ditando como as coisas funcionam e, seja por diferença de pronuncia, pela popularidade da moda ou pela falta de relevância do livro em sua sociedade, lá essa associação não é feita como aqui e, portanto, o nome funciona bem para eles. Entretanto, o nome ou o fato de qualquer coisa fofa ser vista como infantil no ocidente, não quer dizer que qualquer um tenha direito de nos associar com sexualização da infância.
A moda lolita nada tem a ver com o livro Lolita de Vladmir Nabokov. Nós não nos vestimos para parecer crianças e muito menos crianças sexualmente atraentes, o que é uma noção que nem deveria existir. Uma das bases do que vestimos é o não apelo sexual, é nadar contra a corrente das roupas que usam-se das convenções sociais sobre sensualidade para criar uma estética sexy e falar “ei, eu posso ser bonita independente da minha roupa ter como um dos objetivos exaltar atributos sexuais”. Se alguém tem algum tipo de fetiche sobre a forma que nos vestimos e associa isso à crianças nós não somos responsáveis por essas pessoas, o motivo pelo qual nos vestimos assim não tem nada a ver com isso e não vamos parar de nos vestirmos assim por causa disso. Para tornar a situação mais palpável, você não tem pés com a intenção de atrair podólatras ou vai cortá-los fora porque eles existem.
Já está mais do que na hora de pararmos de culpabilizar mulheres que não se encaixam em normas sociais por crimes de terceiros e nenhuma lolita é obrigada a se justificar por vestir rendas e babados que nunca fizeram mal a ninguém.

Em uma nota final, gostaria de agradecer a Annah Hel, dona da marca Lojinha da Annah Hel e autora do blog Satan & the Frills, pela ajuda com esse meu primeiro texto do blog, o qual estava receosa de publicar pelo tema sensível abordado.

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